MIRA-ME

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Mirando


Mirando-se no reflexo do vidro da carruagem, ajeita com vaidade o cabelo. O aftershave que aplicou em demasia, intoxica-me os sentidos. Rói as unhas da mão esquerda enquanto que, com a direita, escrevinha uma mensagem. Espio-o pelo canto do olho. Sarah, parece-me que é esse o nome de com quem comunica. “Estou quase a chegar”, escreve.

“A próxima estação é Picadilly Circus. Mude aqui para a linha Bakerloo. Este comboio vai até Uxbridge”, anuncia a voz feminina e robótica com que todos os passageiros frequentes já estão familiarizados. Pergunto-me muitas vezes como será o rosto desta voz.

Os passageiros que viajam de pé agarram-se às barras verticais plantadas na carruagem para manter o equilíbrio enquanto o maquinista abranda a marcha o comboio. Ouvem-se três apitos anunciando o abrir das portas. O rapaz que se sentara ao meu lado levanta-se, sendo logo de seguida engolido pela a multidão que o comboio despeja, deixando para trás apenas a fragrância do seu aftershave.

No seu lugar, agora desocupado, senta-se uma senhora de idade. Espero que a carruagem se mova para que, na escuridão do túnel, seja possível ver o seu reflexo no vidro da carruagem. Isto porque em Londres encarar alguém directamente nos olhos é quase insultuoso. Inglesices!

Que ar simpático que a senhora tem! Traz consigo um saco de compras e o The Guardian que folheia com cuidado preceito. Ajusta a posição dos óculos, dobra o jornal em dois para não incomodar quem viaja do seu lado e, pouco a pouco, vai deslizando o dedo indicador pelo primeiro parágrafo de modo a não se perder na leitura do artigo. A demora com que o faz contrasta com a rapidez da manobra repetida do meu polegar que percorre o feed do instagram.

“It's hot in this train, isn't it darling?”, diz a senhora despertando-me deste sonambulismo digital em que me sincronizei. Apanhada de surpresa, retiro os auscultadores dos ouvidos e respondo “Oh, yes it is.” Leio-lhe a vontade de conversar nos olhos azuis que espreitam por entre as rugas. Falamos sobre o frio que faz lá fora enquanto ela me aquece com a sua doçura.

Chegámos a King's Cross Station, a carruagem recebe a amálgama de gente que espera ordenada e paciente por detrás da linha amarela pela chegada do comboio. São seis da tarde, o metro está a abarrotar de gente. Cedo o meu lugar a uma grávida que me devolve um sorrido de gratidão.

Gente que não conheço roça as suas pernas nas minhas. Pressinto a sua respiração na minha nuca e o seu cheiro a invadir-me as narinas sem pedir licença. Mas olhar-me nos olhos, esta gente não olha! Caricato este povo urbanizado que tanto espaço partilha mas, que de si, pouco ou nada dá. No silêncio do caos e das coisas dou por mim a sorrir; a dar razão ao meu pai que tanto abomina estas metrópoles.

Uma rapariga de cabelo ruivo, ainda molhado, apanhado num coque, aí com os seus vinte anos, maquilha-se como se estivesse sozinha na sua casa de banho. Contemplo-a enquanto cobre de base as suas sardas. “Mas as tuas sardas são tão bonitas”, dou por mim a pensar!

Chegámos à estação de Holloway road. É aqui que termina a minha viagem. Numa tentativa de me despedir procuro os olhos da senhora simpática a quem me esqueci de perguntar a graça. Não dá por mim. Está absorta na leitura do artigo do The Guardian.

De novo, a voz metálica anuncia a partida e eu apresso-me a furar a multidão de modo a desembarcar. O comboio retoma a sua marcha levando consigo hordas de humanos enlatados. Eu fico aqui, a vê-los partir enquanto a corrente de ar gerada pela deslocação das carruagens me faz esvoaçar o cabelo.

Reparo de novo na rapariga de cabelo ruivo. Sobressai, airosa, no meio das tonalidades escuras do aglomerado dos casacos de inverno. Dou por mim a questionar-me para onde irá? Que destino o universo lhe reservará?

Inventar estórias sobre os passageiros do metro é um dos meus exercícios favoritos. Um passatempo. Um jogo mental que partilho entre mim e eu. Uma entretenga, como se diz lá na aldeia alentejana do meu pai.

A carruagem não transporta apenas a rapariga de cabelo ruivo, leva também a jovem de casaco cor-de-rosa, Megan, que veio pela primeira vez a Londres; o empresário, John, cujas olheiras denunciam não dormir bem há vários dias; o casal, William and Chris que, pela rigidez da sua postura, presumo haverem discutido na noite anterior ; o rapaz, Alex, que vai a caminho do aeroporto ver levantar sonhos e aviões; a senhora, Mary, que se dirige para uma entrevista de trabalho em busca do ganha-pão; o mendigo, Anthony, que não sabe onde dormir esta noite, nem se lembra onde dormiu a noite passada, paira no tempo e nas ruas, epera resignado pelo desígnio dos deuses; a empregada de mesa, Laura, que veio para Londres em busca do seu sonho: ser cantora de ópera. Desejo-lhe mentalmente o dobro da sorte que também persigo.

Talvez seja esta necessidade de imaginar estórias, talvez seja a vontade de lutar contra o tempo que me faz sonhar vir a ser actriz, para assim, poder viver essas mil vidas dentro da minha.

Entretanto o metro é engolido pela negritude do túnel. Duas turistas com feições asiáticas fotografam o sinal mind the gap. Nas escadas uma senhora pede ajuda para a subir com o carrinho de bebé. “Thank you, have a nice evening”, agradece.

O funcionário da estação acena-me um 'adeus' à saída, gesto que repete todos os dias. “See you tomorrow”, retribuo.

No caminho até casa dou por mim a questionar-me qual será a sua estória.

Um dia destes vou-lhe perguntar como se chama...

Looking at his reflection on the glass of the carriage, he straightens his hair with vanity. He has applied too much aftershave, it intoxicates my senses. He bites the nails of his left hand while, with the right one, writes a message. I spy on him from the corner of my eye. Sarah, seems to be the name of the person he is communicating with. “I'm almost there”, he writes.

"The next station is Picadilly Circus. Switch here to the Bakerloo line. This train goes to Uxbridge", announces the female and robotic voice with which all frequent commuters are already familiarized. I often ask myself what the face of this voice looks like.

The passengers standing on their feet cling onto the vertical bars planted in the carriage to keep their balance while the train slows its pace. The doors open at the sounds of three whistles. The young man sitting next to me gets up and is swallowed by the crowd that the train dumps into the station, leaving behind only the traces of his aftershave.

In his seat, now unoccupied, sits an old lady. I wait for the carriage to move so that, in the darkness of the tunnel, I'm able to see her reflection on the window of the train. A way of avoiding facing her because, in case you don't know, in London looking at someone directly in the eye is almost insulting.

What a kind face she has! The lady carries a shopping bag and the most recent issue of the Guardian that she leafs through carefully. She adjusts the position of her glasses, folds the newspaper in order not to disturb those who travel next to her, and, gradually, slides her index finger through the first paragraph making sure she doesn't get lost in the reading of the article. The speed in which she does that contrasts with the rhythm of the repeated manoeuvring of my thumb running through my Instagram feed.

"It's hot in this train, isn't it darling?", asks the lady, waking me up from this digital sleepwalking in which I have synchronized myself into. Taken by surprise, I pull the headphones out of my ears and say, "Oh, yes it is." I read her the urge to talk in the blue eyes peeking through her wrinkles. We talk about the cold outside while she warms me up with her sweetness.

We've arrived at King's Cross Station, the carriage receives the amalgam of people that waited patiently behind the yellow line for the train to arrive. It's six o'clock in the afternoon, the tube is packed with people. I offer my seat to a pregnant woman and she shoots me a smile of gratitude.

People I don't know rub their legs against mine. I feel their breath on the back of my neck and their scents invading my nostrils without my permission but, still, no eye contact.

Funny how we, Londoners, share so much space but little or nothing of each other. In the silence of this chaos I find myself smiling, thinking of my father who abominates this kind of metropoles.

A girl with red hair, still wet, caught in a bun, in her twenties, does her make up as if she were alone in her bathroom. I watch her as she covers her skin. "But your freckles are so beautiful," I think to myself.

We've just arrived at Holloway Road station. This is where my journey ends. In an attempt to say goodbye I look for the eyes of the nice lady whom I forgot to ask the name. She doesn't notice me, she's absorbed in her reading.

Once again the metallic voice announces the departure of the train, so I hasten to pierce the crowd in order to disembark. The train resumes its march carrying hordes of canned humans. As I stand here and watch them leave, the draught generated by the movement of the carriages flutters my hair.

As the train leaves I notice the red-headed girl once more. She stands out, airy, amidst by the dark shades of the winter coats clump. I find myself asking where is she going? What destiny does the universe hold for her ?

Inventing stories about tube passengers is one of my favourite exercises. A hobby. A mental game that I share between myself and I. An entretenga, as they say in the village where my father is from.

The train doesn't transport only the red-haired girl, but also the young woman in the pink coat, Megan, who's in London for the first time; the businessman, John, whose dark circles denounce his lack of sleep; the couple, William and Chris, who, by the rigidity of their posture, I suppose have had an argument the night before; the boy, Alex, who is on his way to the airport, to see his dreams and the airplanes take off; the lady, Mary, who is on her way to a job interview; the beggar, Anthony, who doesn't know where to sleep tonight, nor where he slept yesterday, he floats through time and streets, he waits, resigned, for God's plan and the waitress, Laura, who came to London to chase her dream: becoming an opera singer. I mentally wish her twice as much luck as I wish for myself.

Perhaps it's this need to imagine stories, or maybe the desire to fight against the infinitesimal time we have on this planet that makes me want to be an actress and live a thousand lives within mine.

Meanwhile the tube is swallowed up by the darkness of the tunnel. Two tourists with Asian features photograph the sign "mind the gap". On the stairs a lady asks me to help her with her stroller. “Thank you, have a nice evening'” she says.

The gentleman that works at the station greets me on the way out, a gesture he repeats every day. “See you tomorrow”, I reciprocate.

On the way home I find myself wondering what is his story.

Maybe one day I'll ask him what his name is...

 


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